Páginas

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

POLÍTICA | A diferença Obama

ANELITO DE OLIVEIRA Para além do fato de se tratar da maior potência econômica mundial, a mudança presidencial nos EUA nesta terça-feira deve interessar a brasileiros e não-estadunidenses pelo mundo afora porque se trata de um presidente outro, não apenas de um outro presidente, chegando à Casa de nome tão sugestivo. Não se esperava por essa chegada, não se acreditava que se processaria realmente, até os últimos momentos das eleições, e muitos, por trás da máscara cotidiana, ainda estão e estarão perplexos diante desse acontecimento, apesar dos esforços da mídia para naturalizá-lo, para tornar familiar o indiscutivelmente estranho: Obama isso, Obama aquilo. No Brasil, alguns investem nessa naturalização a partir de uma aproximação entre Obama e Lula, afirmando que um é tão diferente quanto outro, que, em outras palavras, negritude e sindicalismo estão numa espécie de relação de complementaridade. Mas é claro que são dimensões singulares, que se ligam a processos sociais específicos, que por isso mesmo não podem ser colocadas em relação de oposição.
A compreensão da diferença de Barack Obama, do lugar que a condição de negro, à revelia até dele mesmo, ocupa na conformação de sua singularidade política, exige a consideração das tantas opiniões, ou pelo menos de algumas, que vieram à tona durante a campanha eleitoral ano passado. Lembro-me especialmente de uma delas, que foi a de Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo e hoje deputada federal (PSB), enunciada no programa televisivo de Paulo Henrique Amorim, “Conversa Afiada” (Record). Melhor dizendo, era o desfecho de uma opinião, já que a prosa era mais ampla, girava em torno de algo como sociedade e humanismo hoje. Erundina disse que, se fosse cidadã estadunidense, votaria em Hillary Clinton, depois de insistir na tecla de que a solução para a crise social, em todos os sentidos, neste século, está na reforma do “projeto humano”. Tal declaração, até certo ponto previsível, acabou por ficar marcante – pelo menos para mim – em função da margem que deixava, naquele momento, e ainda deixa para se pensar até que ponto essa reforma, para Erundina e seus seguidores, implica determinações de gênero, raça, classe etc.
Ainda que não tenha sido esta a intenção de uma figura política tão ridicularizada por sua condição humanamente nordestina (como esquecer do “Ééérundina” do racista Paulo Francis?), Erundina acabou por colocar em relevo, em relação a Obama, uma suspeita histórica sobre os negros em geral, ignorada até por grande parte dos próprios negros: são comprometidos com o “projeto humano”? Essa suspeita está na base da diferença entre um negro e um sindicalista. De fato, Lula, durante os longos anos que marcaram sua ascensão à presidência, jamais esteve sob esse tipo de suspeita, e seu governo coincide (?) com um dos momentos mais desumanos da história do país: terrorismo das milícias, execuções sumárias pelas polícias, banalização da violência, prostituição infantil, trabalho escravo etc etc. O sindicalismo de Lula, sua imprecisa condição de trabalhador, sempre foi atestado de um humanismo cujo limite crítico parece que são as humilhantes bolsas, uma horrenda “coleira” no pescoço de tantos brasileiros. Que Obama seja comprometido com outro “projeto humano”, afim daquele “humanismo do outro homem” preconizado pelo lituano Emmanuel Lévinas, um humanismo a partir do outro, do negro.
Texto publicado no jornal Gazeta Nortemineira, Montes Claros, 24 de janeiro de 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário