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sábado, 12 de dezembro de 2009

CULTURA | Experiência de comunidade

ANELITO DE OLIVEIRA - A imagem no cabeçalho, de 2007, é de Sophie Calle, substituindo aquela de Maiakóvski, que ficou por um longo tempo contemplando, elegantemente, as coisas aqui. Tem sentido demais uma artista desconcertante entrando depois do poeta eternamente novo, incessante brilhar. Há aproximações possíveis - a interatividade, a alteridade, a espontaneidade etc -, mas não é isso que quero suscitar. A poética de Sophie Calle, elevando-se a partir de experiências de comunidade, colocou em relevo um referencial estranho à cena cultural brasileira neste momento. "Cuide de você", a exposição da artista que passou por São Paulo e Salvador, inscreve uma dúvida de ordem ontológica no rosto do sujeito, inquire-o na direção do ser. Solicitar a 107 mulheres uma abordagem da questão, tal como se processou o trabalho, é mais do que confessar que não se sabe o que é isso, o que é cuidar de si.
Mas o que é isso, afinal, isso de solicitar a outrem que diga aí, que pense sobre a questão que alguém, encerrando um relacionamento, enunciou? Pode ser um modo de sinalizar para uma compreensão de que o se é, o que se pensa que se é, é uma questão que diz respeito a outrem, é, portanto, uma questão ética por excelência. Mas, sendo assim, a ética não passa a constituir um entrave à afirmação mesma do sujeito, não passa a ser um parâmetro fadado a condenar o sujeito pela via do enquadramento na percepção do outro? Se a outrem cabe dizer o que eu sou, então não sou nem posso ser o que eu mesmo quero ser, não sou livre para fazer uma escolha fundamental, o que coloca esse trabalho da artista francesa na contramão da modernidade em termos ontológicos. Claro, nosso devir moderno sempre significou e ainda significa liberdade de poder ser, de ser tudo e nada, de não ser, também. Sophie Calle desvela uma espécie de horizonte intramoderno.
Por dentro, nas entranhas dos dias que temos vivenciado, no seio da experiência comum, na "comun-idade", não há uma identificação absoluta entre o que se diz e o que se é, mas um profundo distanciamento entre sujeito - o que enuncia em relação a um objeto - e ser - o que silencia em relação ao mundo. Assim se torna compreensível que um "Cuide de você" seja recebido com estranheza, como expressão sem significado suficiente, que pode ser decodificada a contento pela comunidade, por uma comunidade de mulheres, no caso. Desviar a questão de um sujeito e compartilhá-la com outrem, com o aval de uma compreensão aberta da arte, é atestar a necessidade de um enfrentamento verdadeiro de questões fundamentais que o próprio sujeito, imerso no cinismo cotidiano, já não consegue empreender. Só o ser, que porta a dimensão do cuidado, da "cura" (Heidegger), sabe o que é cuidar de si. Sophie Calle aguça esta compreensão.

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