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sábado, 5 de dezembro de 2009

JORNALISMO | Micropolítica do afeto

ANELITO DE OLIVEIRA - Vejo que novembro já acabou e dezembro já está aí, derramando-se. Vai ficando cada vez mais difícil perceber a passagem do tempo. Parece que está tudo sempre igual, que todos os dias têm a mesma cara. Um fato apenas me provoca a pensar que não, que estes últimos sete dias são diferentes dos demais: a morte do jornalista, crítico literário e, antes de mais nada, poeta Alécio Cunha. Aconteceu por volta de meia-noite, sábado passado, em Belo Horizonte. Estava internado desde o início de outubro em função de um AVC, como comentei aqui em postagem anterior. Uma lástima!, e claro que é pouco dizer assim, soa como frase feita, uma terrível lástima!, pior ainda. O que dizer diante de uma morte tão prematura, aos 40 anos, sobretudo quando nos sabemos com o vício de considerar toda morte como fato antes do tempo? O que dizer para além do previsível? Não é fácil falar da morte, sobretudo quando se trata da morte de alguém que, na sua existência, revelou-se tão vivo, tão vivaz. Mas é preciso encontrar um jeito de falar - fiquei pensando estes dias - para intensificar a chama dessa vivacidade, para manter resistentemente acesa uma imagem.
Conheci Alécio Cunha através dos seus textos no jornal "Hoje em dia", onde atuou nos últimos 13 anos, por volta de 1996. Chamou-me a atenção a competência com que tratava informações relativas à poesia contemporânea, dos concretos para cá. Deve ter sido em 1997, setembro, nosso primeiro encontro pessoal, quando fui à redação daquele jornal divulgar o lançamento do primeiro número da revista "Orobó". Ao ser perguntado sobre mim - creio que pelo editor do caderno de cultura, Roberto Mendonça -, Alécio disse, naquele entusiasmo juvenil que tanto o distinguia: Anelito de Oliveira? Claro que conheço, do jornal "Não", lá da UFMG, dos textos no jornal "Estado de Minas", de amigos comuns etc. Atendeu-me com uma generosidade surpreendente, revelando uma consideração enorme por algo - minhas investidas artístico-culturais - que eu mesmo via a partir de um viés natural, sem ênfase, apenas como tentativas de fazer alguma coisa. Alécio revelava ali aquela que passou a ser, para mim, sua principal virtude profissional, aquilo que dizia que nele o jornalismo era, no fundo, uma questão de humanidade: o respeito pelo trabalho do outro.
Num período em que os media passaram por profundas transformações, de meados dos anos 1990 a esta primeira década dos anos 2000, o jornalista Alécio Cunha deu uma contribuição decisiva, na capital mineira, para a permanência da relação dos leitores com jornal impresso, deu estímulo novo a essa relação. Essa contribuição foi a inscrição de índices de personalidade, elementos de ordem ética e moral, na produção de notícias, de modo que o que Alécio reportava e escrevia vinha com suas digitais inconfundíveis, notícias com substância, sem o superficialismo noticioso que acabou por se rotinizar, e escritas com elegância, com um estilo próprio, informando e formando a um só tempo, ou pelo menos tentando formar. O “Hoje em dia” passou a ser, no âmbito do jornalismo cultural mineiro, uma referência de qualidade na cobertura de livros e eventos de literatura, tudo encontrando em Alécio Cunha uma recepção no mínimo sensível. A abordagem de Alécio – antes, no dia ou depois do fato literário se processar – tornou-se, pouco a pouco, um gesto sempre esperado por autores, editores, livreiros e leitores, uma espécie de carimbo de que algo – um livro, um lançamento, uma performance – realmente começava a existir.
Naturalmente, a atenção devotada por Alécio à literatura tinha a ver com o fato de que era poeta e leitor insaciável, mas tinha a ver, fundamentalmente, com uma compreensão crítica da sociedade contemporânea e da indústria cultural, do lugar que impulsionou a expansão do jornal e hoje autoriza sua própria estrangulação. O cuidado de Alécio Cunha com a literatura sempre me fez pensar - e agora ainda mais - que, para ele, a literatura era referência de um mundo outro ou, melhor, de um modo outro de estar no mundo, era algo de benjaminiano, aurático, viés que encontra ressonância em sua poesia inatualizante: “Lírica caduca”, “Mínima memória”. Na literatura, Alécio se relacionava, especialmente, com a poesia, abordando, noticiando, resenhando quase tudo que saía de poetas estreantes ou veteranos, relacionava-se, portanto, com a margem da literatura. A positividade com que enfocava o trabalho dos poetas era, sem dúvida, a alegoria de uma defesa da poesia contra a barbárie que, nestas últimas duas décadas, foi-se estabelecendo como princípio de sociabilidade no país. O poeta Alécio, demasiadamente humano, fez no seu jornalismo pontual aquilo que a maioria não consegue fazer na literatura, na universidade, na vida: uma cativante micropolítica do afeto.

Um comentário:

  1. conheci alécio cunha em situação semelhante, anelito. sempre foi muito receptivo. o único - porque fui em outros jornais - que nos recebia com alegria, cuidado e vivo interesse. uma exceção, sem dúvida, tendo em vista essa nossa impressa golpista, parcialmente neutra, oligopólica, desprezível.
    no mais, é incorporar a força singular de alécio, a fim de expressá-la em nós.
    meuabraço,
    luiseustáquio
    ps. estamos elaborando o pés. nosso esboço de proposta, começo de conversa, pode ser visto no blog:http://partidoecos.blogspot.com/

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