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domingo, 4 de abril de 2010

RESENHA | Poesia-baleia

ANELITO DE OLIVEIRA - Os trabalhos de Guilherme Mansur, um dos raros poetas em atividade ainda dignos de nota, são sempre desconcertantes, tanto pelo que revelam quanto pelo que velam. Quando nos encontram (porque se dirigem a um encontro com outrem pelo mundo), logo nos inquirem em muitas dimensões – cultural, ambiental, humana. Não é fácil, diante de criações tão sutilmente pensadas, formular uma resposta no mínimo razoável. Há um risco muito grande de, por excesso ou escassez, desviar do horizonte ultra-sensível que o poeta põe em relevo nos muitos suportes com que lida – instalação, cartão-postal, jornal, livro etc.
No final do ano passado, apareceu, produzido pela Gráfica Ouro Preto, “Bahia baleia”, um caderno de “haikais e deZENhos da caixa de cachalotes, movidos por um encontro com as baleias jubartes”, como se lê na abertura, na Ponta do Apaga Fogo, em Arraial d´Ajuda. Encontro insólito, que encontra (e isso é de grande importância) uma sintonia no produto livro, também insólito, como os demais de Mansur, construído de modo afim do artesanal, não como mera nostalgia da aura, mas como uma espécie de ultrapassamento dos lugares comuns da técnica, no caso, da técnica consagrada pelo mercado editorial.
Coisa para ver antes e para ler, nesta sequência, “Bahia baleia” se impõe pelo formato horizontal, pela economia de signos, pela tensão entre preto e branco, pela aspereza do papelão na capa, pelo peso do papel branco do miolo, enfim, pela sua consistência de objeto. Somados, esses elementos realçam a sobriedade de uma poética que, cultivada ao longo de mais de três décadas, encontra-se seguramente no seu ápice livresco, em termos de produtividade semântica no espaço-livro. No “corpo” dos haikais, o poeta inscreve seu desejo de fazer nas palavras, não com estas, algo além das palavras.
Alargado por traços estranhos, esse “corpo” dos textos acaba por figurar, a partir de uma perspectiva includente, a dimensão extramundana das baleias, seu “corpo” excessivo aos olhos cartesianos da humanidade moderna. Nesse trato do “material” baleia, para lembrar os formalistas russos, o “procedimento” animalizante de Mansur revela sua singularidade: não se trata apenas de falar de uma espécie em extinção, mas de fazer baleias nas palavras, de enunciar uma poesia-baleia. Nesse processo, no qual se conjugam a delicadeza do poeta e a densidade do artista gráfico, as palavras são a metade de uma arte, cuja outra metade é um silêncio crítico.
“Bahia baleia” não nos diz tudo, não é plenamente discursivo, apenas em função da brevidade que distingue a forma haikai, mas porque é produto de um poeta mallarméano, para quem o ideal continua sendo sugerir, um modo de preservar o objeto do dizer. O silêncio que ali se encontra é, portanto, de natureza estética, fundamentalmente, mas não só: no vestígio dessa natureza, uma outra se apresenta, que é aquela de ordem ética. Os haikais de Mansur estão investidos de uma indignação em face das agressões ambientais de um modo geral, e do extermínio de baleias, em especial. No fundo, essa indignação constitui, para o poeta aqui, um problema poético.
Este problema talvez possa ser formulado, em termos sintéticos, assim: como dizer o horrendo, a realidade, sem desdizer a beleza, o encantamento? Mansur escreve num haikai: “ondas da bahia/ uma baleia salta/ sambaleia”, e noutro: “esqueleto na areia/ ossos de canoa/ restos de baleia”. O encontro do poeta com seu tema é tão prazeroso quanto doloroso, e o silêncio acaba sendo uma saída para a contenção tanto da exaltação – previsível – do eu quanto da sua – compreensível – indignação. Disso decorre a criticidade desse silêncio, que, precisamente, a mancha, deformando as palavras, presentifica: presença monstruosa, violação tecnológica do mundo natural, contra a qual o poeta se coloca.
Com estas sutis meditações sobre a condição das baleias, Guilherme Mansur logra meditar, evidentemente, sobre a própria condição da poesia num mundo “shopping center”, movido a interesses mesquinhos. Rara como baleias, a poesia também é uma espécie em extinção, ameaçada exatamente por aqueles que querem ver utilidade em tudo, pelo fato de ser um inutensílio, como Leminski, a quem Mansur dedica seu “Bahia baleia”, gostava de dizer. Mas, na sua solidão, o poeta resiste: “escritos sobre baleia/ leia você ou não leia/ mar cheio de baleias”.

4 comentários:

  1. Anelito, em atividade, quem vc recomenda e que livros?

    O Carlito Azevedo eu sei que é um. Ferreira Gullar e Augusto de Campos ainda estão em forma?

    E em BH? Sebastião Nunes e João Evangelista? Marcelo Dolabelha?
    Abs do Lúcio Jr.

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  2. caro lúcio, escrevi uma resposta mais cedo ao seu comentário, mas parece que extraviou-se. é o seguinte: fazer recomendações é coisa complicada. os nomes que você cita, com seus trabalhos mais relevantes, continuam contando. tenho algumas convicções sobre eficiência artística a partir do critério valéryano de execução: é a execução do poema que é o poema, diz valéry no célebre texto sobre baudelaire, o que vale para a literatura em geral. assim, penso que sebastião uchoa leite, orides fontela e vicente cecim são altamente recomendáveis - o projeto andara, do último, é simplesmente extraordinário. armando freitas filho, antônio fernando de franceschi e guilherme mansur são grandes nomes. na ficção, zulmira tavares, marilene felinto, modesto carone e wilson bueno vão muito além de conteúdos interessantes. há duas jovens prosadores, que acabam de lançar seus livros, que muito me chamam a atenção: ana paula pacheco (a casa deles) e leida reis (a invenção do crime). de todo modo, o cenário é muito rico, e talvez os shows editorais, proporcionados por editoras-daslus, têm dificultado a percepção do que realmente importa na vida literária: a literatura. abraço. anelito

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  3. Obrigado por suas palavras sempre lúcidas.

    Abs do Lúcio Jr.

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  4. A propósito do John Hemingway: realmente, a história da família é muito louca. John agora está escrevendo short histories.

    A partir da biografia que ele fez, fica evidente que o pai dele, Gregory, é a inspiração para um personagem de Ilhas da Corrente, um adolescente que leva a família a morrer num desastre de carro. Gregory, aos dezoito anos, envolveu-se num acidente que feriu seu irmão Patrick, que durante anos teve que se tratar, assim como precipitou uma briga entre o velho Hemingway e sua ex-mulher, mãe deles, depois do quê ela passou mal e morreu. Supõe John que o velho Hemingway e a família culparam Gregory por isso.

    Abs do Lúcio Jr.

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