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domingo, 5 de junho de 2011

ENSAIO | Os sem-valor

ANELITO DE OLIVEIRA - A discussão sobre valores morais, éticos e culturais, encaminhada a partir de uma perspectiva transformadora, livre de quaisquer preconceitos, é imprescindível neste momento de exaltada estabilidade econômica no país, por um lado, e apreensiva instabilidade social, por outro. Com a pobreza histórica, digamos, administrada pelo Governo Federal – o que não quer dizer solução, como atesta o recém-lançado programa “Brasil sem miséria” –, o ambiente é dos mais propícios para o enfrentamento de índices alarmantes, como o da violência urbana, do alcoolismo e consumo de drogas em geral, evidências de degradação do humano. São índices que não podem ser contidos, tampouco revertidos, a partir de políticas públicas de ordem apenas econômica. São índices que exigem uma compreensão mais ampla, inclusive com o amparo da economia, para que possam ser operacionalizados de modo realmente eficaz. Com efeito, é exatamente no horizonte da economia que percebemos a consequência indiscutível da crise de valores, sempre evocada pelos moralistas de plantão, para o presente e futuro do país: pessoas inativas, fora da escola, na mendicância, desempregadas, dependendo de assistência dos governos. Economicamente, essas pessoas, todo um contingente de brasileiros ainda na miséria, representam ônus para o país – presídios, SUS, bolsas, UPPs - quando poderiam representar bônus. De um modo geral, os inativos, “sem-o-que-fazer”, “vagabundos”, são tidos como pessoas desprovidas de valores morais, éticos, culturais, religiosos, sem os considerados referenciais estruturantes da vida em sociedade, referenciais cristãos, em sua maioria, como sabemos: amor ao próximo, honradez, solidariedade, caridade, dignidade, entre outros. Trata-se de valores definidos aprioristicamente, sobretudo em virtude de dogmas cristãos, que acabam por entrar em crise e, finalmente, dissolvem-se na experiência nua e crua da vida social, na luta pela sobrevivência. Fato natural, sem dúvida, num país marcado pelo sincretismo religioso, mas contra o qual o indivíduo resiste em função do projeto civilizatório iluminista que determinou, como não poderia deixar de ser, os contornos da sociabilidade brasileira. Para se manter nos limites da civilização, diferenciando-se do bárbaro, o brasileiro em geral “funciona”, sem dúvida, a partir de princípios universais, seguidos pela maioria dos povos colonizados por cristãos europeus. Princípios que, num dado momento, entram em choque com suas especificidades sociais, materiais, resultantes da vida em sociedade. Nesse choque inusitado, toda uma escala de valores, assimilada à força, dilui-se como demonstração de sua inconsistência real, na vida comum, na “práxis” cotidiana. Se os valores clássicos de ordem religiosa, filosófica, política, cultural, econômica, impostos pelo processo civilizatório, tivessem validade no cotidiano dos que vivem na linha de pobreza no país não seriam, certamente, abandonados. O abandono desses valores se deve justamente ao fato de que não significam nada, à medida que aqueles que os ostentam – os pobres – não são valorizados, mas antes desvalorizados, relegados às margens de um país regido, historicamente, segundo uma permanente obsessão pelo absolutamente novo: um novo Regime, um Estado Novo, uma nova capital, uma nova Constituição e, assim, novos valores constantemente a superar valores decretados, pelas elites, como velhos, muitas vezes da noite para o dia, sem que sequer possam florescer e gerar os “frutos” prometidos. A efetiva democratização, por exemplo, que deveria continuar depois da “abertura” de 1985, é, na política, um valor então ostentado com entusiasmo e logo abandonado, nos anos 1990, sem chegar a se estabelecer em sentido forte, como regime dos “polloi”, da maioria pobre. Já não se postula a democratização do país, apesar de toda a evidência de um “pensamento único”, da vigência de uma ordem ainda autoritária, agora encoberta por um cinismo insuportável. O que está por trás desta situação, do abandono da democratização como valor político? À medida que a democratização não é mais um valor no cenário político nacional, mas um mero ingrediente retórico dos estabelecidos, é natural que o contingente de excluídos, de injustiçados por uma ideia bastante restrita de democracia, não se responsabilize mais pelo espaço público, não se preocupe com a preservação de valores fundamentais para a “saúde” do espaço público, como a tolerância. Cenas comuns nos centros urbanos – grandes, médios e até pequenos – são agressões gratuitas, das mais “leves” às mais pesadas, de um olhar a um palavrão ou um disparo de arma de fogo, como se as pessoas tivessem ido ali para exercitar sua vontade de agredir. Como resposta a este quadro de guerra, administrações públicas investem quantias exorbitantes em projetos de reurbanização, em novas instalações governamentais, a fim de deixarem, elas mesmas, o quanto antes o centro da cidade, o espaço historicamente consagrado como público, com a ilusão de garantir segurança, tranquilidade e produtividade aos burocratas. Como uma espécie de compensação, as antigas instalações governamentais são convertidas em centros culturais, como se a cultura pudesse resolver o problema que assola o espaço público – a banalização da violência –, pudesse acalmar as pessoas, discipliná-las. Realmente, isso pode surtir efeito em relação a um certo número de pessoas, ainda não totalmente adulterada pela experiência da cidade, os rebeldes sem causa da classe média, por exemplo. Mas a possibilidade é mínima disso surtir efeito em relação à multidão de pessoas que vai para o centro das cidades diariamente para “ganhar a vida”, para as quais o centro é um espaço de vivência da dura realidade capitalista. Essas pessoas têm, na verdade, um problema político com a cidade, que consiste na experiência da injustiça que caracteriza, decisivamente, sua relação com a cidade dos anos 1990 para cá. Quando a democratização era um valor político, diretamente vinculado a um ideal de justiça, o grande contingente dos sem-valor de hoje agia, sem dúvida, segundo uma perspectiva de cuidado, embalado pela canção de Milton e Brant: “há que se cuidar da vida”, “há que se cuidar do mundo”. Cuidar era, então, fazer justiça. Hoje, sob a égide de uma ordem estatal excludente, esse contingente exibe, com razão, um descaso pelo espaço público, atitude que precisa ser pensada como algo politicamente motivado, não como algo resultante de um excesso de democracia trazido pela famigerada “abertura”. A motivação, no caso, parte daqueles que, alçados às esferas de poder público, investem, absurdamente, em processos de precarização da democracia, de minimização de liberdades individuais sob o argumento – cínico, claro – de que estão investindo na sustentabilidade do social. Na verdade, as pessoas em geral – pobres, em sua maioria – interessam, mais do que nunca, como números, ou fontes de pesquisa, para o poder público, não como humanos, tampouco cidadãos portadores de direitos. São os sem-valor, de quem os moralistas interessados ainda por cima cobram valores morais.

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